Fontes de mercadorias que passam no Cais, que cheiram a mar, que fedem a peixe, que amam o povo.

A minha virtude é a de saber onde me enganam à passagem, onde o Cais é vil, disfarçado de férteis sonhos de prosperidade vindoura.

Se me chamarem de bruxa, desgraçada, infame, eu chamo-me de vencedora.

Quando as fontes de mercadoria passam no Cais disfarçado, o meu coração palpita e os meus olhos despertam, e as minhas narinas aumentam, e o meu sorriso corrói-me o rosto, porque eu sei que o povo está instigado de sonhos. Vãos. Sonhos tão falsos que a minha pouco ingénua risada vai dirigida e é ouvida por todos eles. Sabem-me num júbilo tal que me chamam de louca. “É Louca. Louca. Doida!”. Dou-me por satisfeita por um só. Um só desnorteado que corre atrás da cana com a salsicha espetada no anzol. E aí rio-me. Rio-me por saber que ele não sairá do mesmo sítio e salsicha vai apodrecer à hora da morte.

Sei-me doida. Endoideci. Endoideci de tal maneira que agora posso dizer-me sabedora de tudo. Posso dizer-me livre. A minha risada é de tal modo sentenciada que agora sei que sou a sério. Agora não há como negar a minha fortaleza destruída mas inultrapassável.

Vivo sozinha, há muitos anos que vivo sozinha, ainda que poucos conte. A minha mãe mora comigo. O meu pai mora com a minha mãe. Ainda que vive sozinha. Na verdade, é a melhor maneira de me conceber: na solidão. A solidão por si só.

Nunca lutei por nada. Nunca amei por ninguém. Nunca me achei gorda, magra, inútil ou feia. Para ser honesta, nem sei bem o que isso é. É-me inconcebível gastar cheiros de povo podre em exageros de fúteis inúteis ocos pensamentos de humano sem face.

A única coisa que me entristeço em acreditar, é no povinho que corre para o cais em busca de fados escritos nos rótulos das embalagens. “Assim será melhor.”, e eu acredito neles. Tenho tamanha fé na crença do seu melhor, que me deixo levar até ao Cais para me rir deles.

1 comentário:

  1. "É-me inconcebível gastar cheiros de povo podre em exageros de fúteis inúteis ocos pensamentos de humano sem face."

    5/5

    ResponderEliminar